Difal e a anterioridade em julgamento no STF

21/02/2022
Difal e a anterioridade em julgamento no STF

Disputas como a do diferencial de alíquotas mostram que é necessária a reformulação do nosso sistema tributário

Até 2015, as operações com mercadorias remetidas a consumidores finais em outro estado estavam sujeitas:

  1. à alíquota interestadual do ICMS no estado de origem (7% ou 12%,), quando o bem ou serviço era destinado a um consumidor final contribuinte, ficando este último responsável pelo pagamento do diferencial de alíquota (Difal) ao estado de destino; ou
  2. à alíquota interna do ICMS do estado de origem, quando o bem ou serviço era destinado a não contribuinte, caso em que o remetente ficava responsável pelo ICMS ao estado de origem.

Com as vendas online para pessoas físicas (não contribuintes), os estados destinatários de mercadorias passaram a sofrer perda de arrecadação e competitividade, o que motivou a aprovação da Emenda Constitucional nº 87/2015 que estendeu a sistemática do Difal às operações interestaduais com não contribuintes, permitindo que também neste caso a arrecadação fosse partilhada entre os estados de origem e de destino.

A EC 87/2015 estabeleceu que nas operações com consumidor final “contribuinte ou não do imposto, localizado em outro Estado, adotar-se-á a alíquota interestadual e caberá ao Estado de localização do destinatário o imposto correspondente à diferença entre a alíquota interna do Estado destinatário e a alíquota interestadual” (art. 155, § 2º, VII da CF/88), sendo que “a responsabilidade pelo recolhimento do imposto correspondente à diferença entre a alíquota interna e a interestadual […] será atribuída: (…) b) ao remetente, quando o destinatário não for contribuinte do imposto” (art. 155, § 2º, VIII).

Essa previsão constitucional foi regulada pelo Convênio de ICMS 93/15 e introduzida nas legislações estaduais por meio de leis locais, porém, sem a prévia e necessária previsão em lei complementar (LC), como exige o art. 146 da CF/88.

Esse vício foi levado ao conhecimento do Poder Judiciário, através do Recurso Extraordinário (RE) 1.287.019[1], com repercussão geral (Tema 1093)[2], e ADI 5469[3][4], ambos julgados em 24 de fevereiro de 2021 pelo plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) que considerou inconstitucional a exigência do Difal prevista no Convênio ICMS 93/2015.

Os ministros entenderam que os estados e o Distrito Federal, ao editarem o Convênio ICMS 93/2015, usurparam a competência exclusiva da lei complementar, a quem cabe editar norma geral, não podendo os elementos essenciais do imposto serem disciplinados por convênio. Deste modo, antes da edição de lei complementar, os entes federados não podem cobrar o Difal nas operações ou prestações interestaduais com não contribuintes do ICMS.

Os ministros, contudo, aplicaram no caso a modulação para que estas decisões produzissem efeitos apenas a partir de 2022, dando a oportunidade ao Congresso Nacional para editar a necessária lei complementar.

Foi então apresentado ao Congresso Nacional o Projeto de Lei Complementar 32/21, aprovado em 20 de dezembro de 2021, o qual seguiu para a sanção do presidente da República, o que só ocorreu em 4 de janeiro de 2022, com a publicação da LC 190/2022.

Essa lei complementar, por sua vez, estabelece no seu art. 3º que o texto “entra em vigor na data de sua publicação, observado, quanto à produção de efeitos, o disposto na alínea “c” do inciso III do caput do art. 150 da Constituição Federal”.

Esse dispositivo, propositalmente introduzido pelo Congresso Nacional, subordina a LC 190/2022 à regra segundo a qual “é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: (…) III – cobrar tributos: (…) c) antes de decorridos noventa dias da data em que haja sido publicada a lei que os instituiu ou aumentou, observado o disposto na alínea b”.

Já a alínea “b” do art. 150, III da CF/88 — que nos termos da alínea “c” acima deverá ser observada —, impede que o tributo seja cobrado “no mesmo exercício financeiro em que haja sido publicada a lei que os instituiu ou aumentou”. É que na lógica do texto constitucional a anterioridade nonagesimal não anda sozinha, pois sempre se aplica a anterioridade do exercício, com a garantia de no mínimo 90 dias de antecedência. Estes são preceitos que têm função garantista e que decorrem dos princípios da não surpresa, proteção da confiança e boa-fé.

O art. 3º revela que, diante da nova relação jurídico-tributária inaugurada pela LC 190/2022, suas disposições apenas poderão produzir seus efeitos após decorridos 90 dias de sua publicação e no exercício financeiro seguinte (2023).

É fato que se poderia até questionar se o cuidado do Congresso ao inserir o art. 3º seria necessário diante do que já dispõe o texto constitucional, contudo, este debate se torna desnecessário face à letra expressa do referido dispositivo.

Os estados, porém, em sua sanha arrecadatória têm ignorado o art. 3º e manifestado sua pretensão de dar início à cobrança do Difal[5] – alguns, inclusive, chegaram a editar normas internas antes mesmo da publicação da LC 190/2022. De outro lado, a postura dos estados gerou forte reação por parte dos contribuintes, que têm ajuizado medidas judiciais contra esta cobrança, contando com inúmeras liminares proferidas em seu favor por todo o país.

A atual postura dos estados entra em confronto com a posição adotada pelos mesmos durante o trâmite do PLP 32/21, em que alguns destes entes enviaram ofícios ao Senado especificando a urgência na sua tramitação com base na necessidade de cumprimento da anterioridade de exercício, como se verifica nos requerimentos disponíveis no sítio do Senado.

Diante deste cenário de grande insegurança jurídica, a Abimaq ajuizou a ADI nº 7066[6] questionando a constitucionalidade do art. 3º da LC nº 190/2022, por não ter observado o princípio da anualidade, alegando que:

  1. a LC nº 190/2022 criou uma nova relação jurídica, pois definiu os contribuintes, estabeleceu a forma escritural e operacional das regras de imposto; fixou estabelecimento responsável pelo recolhimento do tributo, tendo por base o local das operações relativas à circulação de mercadorias e das prestações de serviços; fixou a base de cálculo estabelecendo a forma para que o imposto a integre, entre outras;
  2. a LC 190/22 não veicula somente uma norma geral e não regulamenta uma exação que já existia, pois a EC 87/15 não era autoaplicável aos estados e o STF retirou do mundo jurídico o Convênio ICMS 93/15;
  3. o constituinte determina que “é possível cobrar tributo após 90 dias da norma que o instituiu ou aumento, mas desde que seja observada, também, a anterioridade geral (do exercício financeiro anterior), ou seja, a norma (LC) tem que ser publicada no exercício financeiro anterior, situação essa que não ocorreu com a LC 190/22, eis que foi publicada em 5 de janeiro de 2022, de modo que somente poderá produzir efeitos a partir de 1º de janeiro de 2023”;
  4. “o próprio legislador complementar entendeu que estavam diante de uma norma que regulamentaria uma nova relação jurídica tributária, por isso a previsão EXPRESSA da observância do artigo 150, III, ‘c’ da CF, no artigo 3º da LC 190/22, o qual é indissociável da alínea ‘b”.

De outro lado, foi ajuizada a ADI nº 7070 por Alagoas contra o art. 3º da LC 190/2022, sob o argumento diametralmente oposto de que tal dispositivo não poderia submeter a eficácia da lei às garantias constitucionais, pois:

  1. esta não veiculou aumento ou instituição de imposto;
  2. a subordinação dos efeitos da lei complementar às garantias constitucionais seria desproporcional, pois a cobrança do Difal vinha sendo realizada desde 2015;
  3. alega que as garantias da anterioridade anual e nonagesimal não podem se aplicar a tributação em curso;
  4. alega que a aplicação das garantias constitucionais afetaria a concorrência, estabelecendo tratamento desigual entre operações internas e interestaduais;
  5. alega ainda a perda de arrecadação, apelando para um viés consequencialista.

Ambas as ADIs foram distribuídas no STF para a relatoria do ministro Alexandre de Moraes, mas seus respectivos pedidos cautelares não foram ainda examinados.

No julgamento do RE 1287019, o ministro proferiu voto no sentido de que o Difal “não se trata de um imposto propriamente dito, mas tão somente de uma sistemática de distribuição e adequação do ICMS nas operações interestaduais”.

Apesar dessa posição do ministro divergir do entendimento então firmado pelo plenário do STF, o julgamento das novas ADIs 7066 e 7070 que tratam da LC 190/2022 deve ter como ponto de partida o entendimento já firmado pela corte no sentido de que a EC 87/2015 inaugurou uma nova relação jurídica. Portanto, independentemente de sua convicção individual, espera-se que o ministro respeite a posição majoritária adotada pelo colegiado no RE 1287019 e ADI 5469.

Afinal, a nova discussão em torno da LC 190/2022 não autoriza que se altere o sentido e alcance do que restou decidido naqueles julgados, seja face ao princípio do colegiado, seja por razões de coerência interna e de segurança jurídica.

Note-se, porém, que no RE 1287019 e na ADI 5469 os ministros Nunes Marques, Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes e Luiz Fux se manifestaram no mesmo sentido do voto do ministro Moraes, o que pode apontar um papel de destaque do novo ministro André Mendonça, atuando como fiel dessa balança.

Toda a celeuma gerada em torno do início da cobrança do Difal revela a complexidade desse imposto e a insegurança jurídica que sua cobrança gera tanto para os contribuintes como para os estados.

Disputas como a do Difal mostram que é necessária a reformulação do nosso sistema tributário, como proposto no texto da PEC 110/2019, em trâmite no Senado, pois a reforma é o único caminho para solucionar as nossas mazelas e sua aprovação tem um senso de urgência.

Colaborou para a elaboração deste artigo Caio Albarello, advogado de Tozzini Freire


[1] O RE 1287019 foi interposto por Madeira Madeira Comércio Eletrônico S/A contra decisão do Tribunal de Justiça do Distrito Federal (TJDFT), que entendeu que a cobrança do Difal não está condicionada à edição de lei complementar.

[2] A tese firmada nesta repercussão geral foi a seguinte: “A cobrança do diferencial de alíquota alusiva ao ICMS, conforme introduzido pela emenda EC 87/2015, pressupõe a edição de lei complementar veiculando normas gerais”.

[3] ADI 5469 ajuizada pela Associação Brasileira de Comércio Eletrônico contra o Convênio ICMS 93/2015.

[4] A ADI 5469 foi julgada procedente para declarar a inconstitucionalidade formal das cláusulas 1ª, 2ª, 3ª, 6ª e 9ª do Convênio ICMS 93/2015.

[5] São os seguintes os estados que já se posicionaram sobre o início da cobrança em 2022: Alagoas (01/04/2022); Amazonas (05/04/2022); Bahia (imediatamente); Ceará (01/04/2022); Minas Gerais (01/04/2022); Paraná (01/04/2022); Pernambuco (05/04/2022); Piauí (imediatamente); Rio Grande do Norte (01/04/2022); Roraima (31/03/2022); São Paulo (31/03/2022; Sergipe (31/03/2022); e Tocantins (30/03/2022).

[6] Entidades que ingressaram como amicus curie na ADI 7066: Associação Brasileira de Advocacia Tributária (ABAT); Associação Brasileira da Indústria de Alta Tecnologia de Produtos para Saúde (ABIMED); Associação Brasileira da Indústria Têxtil e Confecção (ABIT); Federação das Indústrias de São Paulo (FIESP); Sindicato da Indústria de Produtos Farmacêuticos (SINDUSFARMA); Estados do ACRE, AMAPÁ, AMAZONAS, BAHIA, CEARÁ, ESPÍRITO SANTO, GOIÁS, MARANHÃO, MATO GROSSO, MATO GROSSO DO SUL, MINAS GERAIS, PARÁ, PARAÍBA, PARANÁ, PERNAMBUCO, PIAUÍ, RIO DE JANEIRO, RIO GRANDE DO SUL, SANTA CATARINA, SÃO PAULO, SERGIPE, TOCANTINS e o DISTRITO FEDERAL.

FONTE: JOTA

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