Varejistas de moda apontam privilégio tributário irregular de plataformas chinesas

17/02/2023
Varejistas de moda apontam privilégio tributário irregular de plataformas chinesas

Crédito: Fernanda Garcia/ Unsplash

Produtos importados receberiam isenção fiscal indevida. Receita Federal promete apertar o cerco a partir de julho

O Brasil viu o número de encomendas internacionais escalar nos últimos anos, com a consolidação do ecommerce. A novidade veio acompanhada de queixas de uma quebra da isonomia tributária feita por setores do varejo mais impactados por essa concorrência, como o da moda. Pressionada a conter distorções, a Receita Federal anunciou o endurecimento de exigências a vendedores e transportadores a partir de julho.

Oficialmente, as importações de pequeno valor somaram US$ 13,14 bilhões em 2022 no Brasil. O volume, calculado na composição da balança comercial pelo Banco Central, representa mais que o dobro do observado um ano antes, quando essa categoria de remessas bateu US$ 5,67 bilhões. O salto é ainda maior quando se olha o retrospecto: em 2013, esse tipo de operações marcava US$ 83 milhões.

O comportamento se espalhou entre os consumidores. Dentre as quase 50 milhões de pessoas que compram online no Brasil, cerca de metade consumiram de plataformas estrangeiras. Entre as principais, estão as asiáticas Shopee, Aliexpress e Shein, segundo pesquisa da consultoria NielsenIQ e Ebit referente ao primeiro semestre de 2022.

O setor de moda é o que mais recebe atenção de quem se aventura em importar as próprias compras. Pouco menos de um terço dos consumidores que fazem compras internacionais online,  mais precisamente 28% deles, contam que consumiram nessa categoria.

Inclusive, entre as empresas mais citadas, está a ascendente gigante do varejo de vestuário, calçados e acessórios, Shein. Estima-se que ela pode ter tido um faturamento de cerca de R$ 8 bilhões no Brasil no ano passado, o que representaria cerca de 300% em relação a 2021, de acordo com cálculos do BTG Pactual.

Em comparação, a Renner, maior rede brasileira de fast fashion, nascida no Rio Grande do Sul em 1965, somaria R$ 11,6 bilhões em 2022. De acordo com a análise do banco, a Shein deve continuar ampliando sua participação no Brasil, especialmente entre o público de rendas média e baixa – o que, é claro, joga pressão em quem se consolidou neste mercado.

Conhecida pelos lançamentos de moda instantâneos, a partir de tendências captadas com agilidade nas redes sociais, a Shein atrai os brasileiros com pagamento por Pix e encomendas que chegam diretamente da China em período frequentemente inferior a dez dias.

No ano passado, abriu a primeira de suas lojas em modelo de flagship em São Paulo (para apresentar seus produtos em uma experiência mais especial, mantendo o carro-chefe na plataforma digital) e lançou coleções em parceria com a cantora Anitta. Sem esquecer dos preços baixos em relação aos praticados no Brasil.

As empresas nacionais apontam que um dos motivos para as empresas estrangeiras praticarem preços inferiores é que elas não estariam recolhendo os tributos devidos, a começar pelo imposto de importação. O tributo federal incide sobre a entrada de mercadoria estrangeira em território nacional – quando uma loja brasileira negocia com fornecedores, por exemplo.

A característica dele é ser extrafiscal, funcionando mais como um instrumento de regulação do comércio exterior, para estimular ou conter certas condutas que podem afetar a indústria e o mercado brasileiros. Hoje, as alíquotas são padronizadas para os países do Mercosul, variando entre isenção e 35%, com possibilidade de exceções ditadas por casa nação.

A alíquota que incide sobre itens de moda às varejistas no Brasil é de 35%. O setor diz que ela recai mais sobre itens que a produção nacional não comporta, como peças de frio intenso. A estimativa é que cerca de 75% do que é vendido pelos grandes magazines seja produzido no país – com uma carga tributária que soma tributos como ICMS, IPI, PIS e Cofins –, enquanto sobre o restante se paga o imposto de importação.

A situação é um pouco diferente quando um consumidor brasileiro compra diretamente de uma plataforma estrangeira. Nesses casos, haveria uma tributação base pela Receita Federal de 60% do valor das remessas de até US$ 3 mil – excluindo livros e medicamentos de até US$ 10 mil para uso próprio.

Há ainda uma condição especial na entrada de um pacote pela aduana: encomendas internacionais transportadas pelos Correios no valor de até US$ 50 (incluindo o frete e o seguro), desde que elas sejam uma remessa de uma pessoa física para outra. Portanto, em uma análise estrita, as comprinhas online não estariam abrangidas por esta condição especial.

As varejistas brasileiras reclamam que a exceção seria explorada pelas plataformas para burlar as exigências da Receita. De fato, não faltam tutoriais online que ensinam a evitar taxação por compras na Shein, Shopee e Aliexpress. A principal dica para os consumidores é fracionar os pedidos. Em alguns casos, as plataformas reembolsam metade do valor pago à aduana.

“Essa questão é muito sensível para nós, dos pequenos aos grandes varejistas de moda. Temos visto o ingresso de mercadorias sem o devido pagamento de tributos, prejudicando muito a isonomia tributária entre as plataformas internacionais e o varejo nacional”, afirma Edmundo Lima, diretor-executivo da Associação Brasileira do Varejo Têxtil (Abvtex).

Em outros segmentos, o posicionamento é semelhante. “Há uma brecha enorme que, no fim, acaba favorecendo o varejo internacional. É como se enfrentássemos uma concorrência desleal”, comenta André Iizuka, diretor de relações corporativas e institucionais da Associação Brasileira de Comércio Eletrônico (Abcomm).

As empresas brasileiras também sustentam que os próprios vendedores costumam se encarregar de declarar abaixo do que foi pago – a Receita alerta que pode corrigir o valor dos produtos e ainda aplicar uma multa se suspeitar.

Isenções tributárias

O fato é que não é a totalidade das remessas que são tributadas. “A teoria e a prática estão desalinhadas. Na realidade, as compras de plataformas internacionais entram na mesma lógica das pessoas físicas”, afirma a advogada Fernanda Kotzias, especialista em Direito Aduaneiro e conselheira do Carf.

“Aumentaram as remessas, mas não há braço para essa tributação. A aduana funciona com análise de riscos, e o maior risco não está em pequenas remessas, mas naquilo que pode causar insegurança ou é proibido”, avalia. Nesse sentido, ela defende que se invista em coibir práticas desleais com facilitação e controle, sem atacar o sistema de declaração simplificada.

Dentro dessa análise de riscos, a prioridade para otimizar recursos também é voltada para as importações em maiores quantidades, que podem indicar aquisição para revenda ilegal.

“Quando esse tipo de prática é feita por setores econômicos chama mais atenção e tem impactos maiores. Temos observado um aumento da repressão relacionada ao comércio eletrônico, o que poderia indicar aumento dessa demanda de atuação da Receita”, diz o auditor fiscal Dão Real dos Santos, da Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal.

A questão não residiria especificamente na existência de isenção para itens de até determinado patamar, os chamados de minimis, e sim em brechas para fraudes nas declarações e em dificuldades de fiscalização enfrentadas pela Receita para esses casos.

A Organização Mundial do Comércio (OMC) vê a ferramenta como uma forma de agilizar o tempo de desembaraço aduaneiro e priorizar cargas de maior risco ou relevância econômica. A maior parte dos países aposta em de minimis de até US$ 100. Estão neste patamar 42 países de um rol de 100 nações analisadas pela Global Express Association. Outros 39 estão na faixa de US$ 100 a US$ 199.

A exigência de que esse benefício valha apenas para trocas entre pessoas físicas não é uma regra geral em todos os países. Na União Europeia, a isenção ao imposto de importação chega a produtos de até 150 euros, mesmo que o remetente seja uma empresa; porém, é necessário recolher o imposto único sobre o consumo para manter igualdade com os fabricados internamente.

No caso brasileiro, há ainda uma discussão legal sobre o valor do de minimis e exigência das trocas entre pessoas físicas. Essas regras foram fixadas pela Portaria 156/1999 do Ministério da Fazenda, que também previu a alíquota de 60% para o regime de tributação simplificada.

O texto regulamentou o Decreto-lei 1.804/1980, que garante ao Ministério a possibilidade de regrar a isenção do imposto de importação em remessas de baixo valor. A lei estabelece limite de US$ 100 dólares para isenção e exige que o destinatário seja pessoa física, mas não prevê a mesma exigência para o remetente.

Em 2014, quando o valor atribuído às pequenas remessas era equivalente a menos de 1% do que o atual, a Receita defendeu sua lógica para o desembaraço aduaneiro dessas remessas – a nota técnica foi provocada por decisões judiciais que autorizavam a isenção para remessas entre US$ 50 e US$ 100.

A instituição afirmava que os critérios para esse limite levavam em conta o volume de mercadorias desembaraçadas nessa condição e o impacto delas na economia nacional; a concorrência que os produtos exercem sobre os nacionais, “que pagam regularmente seus tributos”; a relevância dessa renúncia fiscal; e o custo de fiscalização e cobrança dos tributos sobre essas remessas.

Também destacou que a a cobrança da alíquota de 60% nesse grupo de remessas era uma “medida necessária e importante na prevenção da concorrência desleal, proteção e regulação da economia nacional”.

Novas regras para remessas internacionais

Agora, a Receita Federal reforçou regras sobre a declaração simplificada aplicável às remessas internacionais. Na prática, não há mudanças no recolhimento de tributos, mas um esforço em também responsabilizar empresas envolvidas na logística sobre o controle aduaneiro. Assim, é esperado que declarações falsas ou com omissões sejam dificultadas.

Publicada em dezembro, a Instrução Normativa 2124/2022 da Receita Federal obriga as empresas de courier e o Correios a preencher, na importação de remessas internacionais, uma ficha com detalhes sobre o valor e o peso das mercadorias, além do nome do marketplace, contato do vendedor, endereço físico, entre outros. Também é necessário informar o número do pedido.

Os Correios terão que fornecer os detalhes 48 horas antes da chegada da mercadoria ao Brasil; no caso de encomendas expressas, o transportador deve enviar com quatro horas de antecedência. O descumprimento pode render até cancelamento da habilitação para operar o despacho de remessas.

Com estes dados, a Receita adianta que poderá notificar sobre remessas que necessitem de informações antes da chegada, barrar encomendas e pedir declaração de importação de remessa (DIR) – esse último caso se aplica a remessas tributáveis ou com adiantamento do valor do imposto de importação, por exemplo. Também prevê que pode enviar encomendas de volta caso o preenchimento esteja incompleto. 

A instrução indica a possibilidade de a Coordenação-Geral de Administração Aduaneira (Coana), ligada à Receita, fazer novas regulamentações: exigir a disponibilização do pedido de compra de cada mercadoria a ser importada na plataforma responsável pela venda e dar tratamento prioritário às transportadoras que entregarem as declarações antecipadamente.

O crescimento das compras internacionais se concentrou massivamente nos Correios, que costuma fazer o desembaraço aduaneiro dessas remessas diretamente em seu Centro de Distribuição Internacional, em Curitiba. A empresa não divulga números sobre essas operações – elas são classificadas como sensíveis por se tratar de um mercado concorrencial, afirma.

“Mesmo com as restrições no transporte de carga internacional, pelos custos operacionais ocasionados pela pandemia, a estatal tem registrado ano a ano o aumento de remessas de origem internacional. Em 2022, por exemplo, houve um incremento relevante no volume de objetos internacionais com relação a 2021″, diz em resposta à reportagem. 

“Quando o consumidor acessa uma plataforma estrangeira, ele precisa saber que ele se tornará um importador, com novas obrigações”, afirma Fábio Baracat, CEO da Sinelog, empresa de tecnologia para o setor de ecommerce cross border.

“No momento em que a Receita coloca mais responsabilização aos transportadores, isso deixa de depender apenas da fiscalização. Ao mesmo tempo, as plataformas, se não se adequarem, terão índice de apreensão muito alto. Isso dará equilíbrio ao mercado”, avalia.

A situação não se restringe ao Brasil. Os Estados Unidos testam modelo semelhante ao que a Receita Federal começará a implementar, com mais colaboração com as plataformas mais populares. Por lá, desde 2020, elas precisam preencher formulário unificado com detalhes sobre as encomendas e vendedores antes que os pacotes cheguem ao país.

No Brasil, a principal reclamação tributária de varejistas se dá sobre o modelo de cobrança do imposto de importação, mas, conforme o ecommerce global passa a ganhar relevância na economia brasileira, outros contornos começam a surgir.

O principal é que esse tributo é recolhido pela União, enquanto produtos similares aos importados pagam ICMS aos estados – caso das peças de vestuário. Portanto, haveria uma espécie de renúncia fiscal por parte deles que ganha relevância conforme essas trocas aumentam.

“No Brasil, temos dificuldades internas sobre o destino do imposto e as diferenças de alíquotas entre os estados. Nesse caso, ainda haveria a discussão sobre quem seria responsável por recolher”, afirma a advogada Kotzias. A exemplo do ecommerce nacional, o destinatário paga o ICMS e existe o diferencial de alíquotas para dar conta de diferenças.

Na eventual unificação dos tributos em torno de um imposto único para consumo, poderia se partir para modelo parecido ao que segue a União Europeia para pequenas remessas. Porém, atualmente, nenhuma das duas principais propostas de reforma tributária em discussão no Congresso endereça essa questão diretamente.

No governo de Jair Bolsonaro (PL), a situação dos tributos de importação chegou a ser questionada pela equipe econômica, mas uma proposta nunca foi submetida. Na Câmara dos Deputados, o então parlamentar Alexandre Frota (PSDB-SP) criou projeto de lei para impor a cobrança do imposto de importação em todas as compras no ecommerce, mas ele próprio retirou de tramitação – afinal, peal regra atual, ele já é, em tese, obrigatório.

“Não queremos aumento ou impostos específicos para esses casos, até porque sempre defendemos a redução da alíquota que recai sobre a moda. Queremos que as plataformas estrangeiras cumpram o que é vigente, tanto na tributação quanto em normas de saúde e trabalho”, diz Lima, da Abvtex.

A discussão sobre boas condições de competitividade para varejistas e produtores nacionais não se encerra nos tributos, mas no fomento à inserção dos brasileiros nas cadeias globais – em outras palavras, exportar.

“No comércio eletrônico, existe uma oportunidade de exportar produtos brasileiros de forma semelhante ao que já acontece internamente. Existe demanda por produtos do brasil, com apelo verde e regional, com marcas nossas como cafés especiais, cachaça, biquínis…”, diz Baracat, da Sinerlog.

Este movimento já começou, mas a passos mais lentos. Na balança comercial do Banco Central, as exportações de remessas de pequeno valor foram calculadas em US$ 5 bilhões em 2022 — o equivalente a 38% do valor dos itens importados sob esta rubrica. Um ano antes, o montante das exportações havia sido de US$ 2,2 bilhões.

Procurada, a Shopee afirmou que não comentaria o assunto. Aliexpress e Shein não retornaram os contatos da reportagem.

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